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terça-feira, 16/06/20

MÉDICOS LANÇAM CARTILHA PARA CONSCIENTIZAR POPULAÇÃO DA IMPORTÂNCIA DO SUS



Em breve, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) fará circular em diversas capitais brasileiras a cartilha “De quem é o SUS?”, editada e impressa pela Regional Minas Gerais, um dos nove estados em que a entidade já está presente, por meio de centenas de profissionais que se uniram em defesa da democracia, dos direitos humanos e do Sistema Único de Saúde (SUS). “É uma forma de organização suprapartidária da sociedade civil para a defesa da democracia, dos direitos humanos e da saúde pública como um direito de todos e dever do Estado”, resume o médico e cartunista Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues, o Lor, que ilustrou o texto.

Ele conta que a decisão de publicar a cartilha surgiu antes mesmo da chegada do novo coronavírus, “pois concluímos que precisávamos de uma ferramenta de comunicação direta entre os profissionais da saúde que defendem a saúde pública e a população brasileira que necessita do SUS”.

Em 22 páginas, a cartilha explica o que é o SUS, o que ele garante, quem é responsável por seus serviços, de onde vêm os recursos para mantê-lo, o que podemos cobrar dele e de quem devemos exigir que os direitos previstos na Constituição de 1988 – que universalizou a assistência à saúde no país – sejam respeitados. Por fim, alerta para a existência de graves ameaças à sua sustentação, como o congelamento de gastos imposto pela Emenda Constitucional (EC) 95/2017, além de projetos que buscam dar fim à saúde pública no Brasil, único país, além do Reino Unido, Canadá e Austrália, que ainda oferece atendimento gratuito à população, custeado pelos impostos.

No país, mais de 70% da população depende exclusivamente do SUS, uma vez que apenas 22% tem planos privados, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Fundada durante assembleia realizada em setembro do ano passado, em Fortaleza (CE), onde está sediada nacionalmente, a ABMMD reúne médicos do Ceará, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Paraíba, Rio Grande do Norte e Acre. Integrante do coletivo mineiro, Dra. Maria das Graças Rodrigues de Oliveira, uma das autoras da cartilha, explica porque os atuais recursos destinados ao SUS são insuficientes, aponta outras deficiências que afetam o sistema e opina sobre o funcionamento dos consórcios municipais e conselhos locais de saúde, entre outros assuntos abordados na entrevista a seguir.

A cartilha afirma que os recursos atuais do SUS não são suficientes. Quanto a saúde perdeu nos últimos anos?
Segundo o economista Bruno Moretti, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a saúde deveria ter, em 2020, pelo menos R$ 132,4 bilhões. Com as restrições atuais, no entanto, o orçamento poderá ficar mais de R$ 30 bilhões abaixo do mínimo obrigatório. A Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em 2017, que impôs o texto de gastos, tem sido trágica para o SUS. Para se ter uma ideia, de 2018 a 2020, de acordo com estudo apresentado na Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde, o prejuízo foi de R$ 22,48 bilhões e, ao longo de duas décadas, os danos estão sendo estimados em R$ 400 bilhões.

Além de recursos financeiros, que outras medidas seriam necessárias para que o SUS atenda aos princípios que orientaram sua criação?
Aumentar os recursos disponibilizados entre os vários níveis de governo; revogar a Emenda Constitucional (EC) 95; melhorar a governança do sistema; rever o pacto federativo, com redefinição do papel dos diferentes níveis de governo, da regionalização e da municipalização; melhorar o acesso e a qualidade da atenção primária de saúde; rever a política de recursos humanos e a formação dos profissionais de saúde com foco na saúde coletiva e na atenção primária; aprimorar os mecanismos de participação social; aumentar a eficiência da área de atenção especializada e hospitalar; estudar e aprender com as experiências internacionais sobre como fortalecer a concepção de sistema público universal e sustentável; aperfeiçoar o marco jurídico para a garantia do princípio de integralidade, a fim de evitar o fenômeno da excessiva judicialização no SUS; e promover um debate aberto entre os atores governamentais, a academia e a sociedade civil.

A cartilha afirma que “existem muitos problemas a serem resolvidos”. Além do subfinanciamento, quais são esses problemas?
Sobrecarga dos estados e municípios, como consequência da redução da contribuição da esfera federal, que impõe desafios à municipalização e à regionalização; múltiplos problemas de gestão; dificuldades de acesso e baixa resolutividade na atenção primária; comprometimento da integralidade da atenção, pela deficiente coordenação entre a atenção primária e a atenção especializada e hospitalar; judicialização da saúde; carência de recursos humanos; formação acadêmica dos profissionais com pouco foco no SUS e na atenção primária; e pequena participação social, por meio de conselhos burocratizados e, às vezes, pouco democráticos e corporativos.

A Reforma Sanitária inspirou a criação do SUS. O que havia por detrás daquele conceito?
Na década de 1970, em consequência da grande migração populacional para as periferias urbanas de cidades grandes e médias e do aumento da concentração de renda, da pau­perização da população e da tensão social, as prefeituras passaram a oferecer serviços sociais básicos, entre os quais os de saúde, através de unidades básicas em seus territórios, com experiências de atenção integral, universal e equitativa. As secretarias municipais e estaduais de saúde fizeram convênios com o Mi­nistério da Previdência e Assistência Social, com o apoio do Ministério da Saúde, visando à expansão do atendimento integral à saúde e permitindo a ampliação de cobertura dos serviços em muitos municípios. Na década de 1980, surgiu um movimento de formulação de políticas públicas orientadas para os direitos de cidadania, ao qual se agregaram acadêmicos e pesquisadores de faculdades de Saúde Pública e de muitas universidades públicas brasileiras, além de profissionais dos ministérios da Saúde e da Previdência, o chamado “Movimento da Reforma Sanitária Brasileira”. Essa mobilização foi determinante para a criação do SUS pela Constituição de 1988, segundo a qual a saúde é direito de todos e dever do estado. O êxito dos sistemas públicos de saúde da maioria dos países europeus serviu como parâmetro internacional. Os avanços dos anos 1980 foram ratificados e impulsionados pelas Leis 8.080 e 8.142/1990.

Os consórcios intermunicipais funcionam adequadamente?
Apesar de os consórcios se constituírem em uma forma inovadora de gestão do SUS e das evidências de aumento da eficiência e da qualidade dos serviços ofertados, essa iniciativa pode ser inviabilizada por alguns fatores de ordem financeira e política, como a grande vulnerabilidade fiscal dos municípios, o abandono das parcerias e os interesses político-eleitorais de prefeitos.

A Carta dos Direitos dos Usuários de Saúde lista seis princípios básicos para garantir atendimento digno a todos os brasileiros. Quão desrespeitada ela tem sido?
Em virtude dos obstáculos e desafios à plena aplicação dos princípios do SUS, citados acima, a Carta dos Direitos dos Usuários não tem sido contemplada em sua plenitude, de modo especial a integralidade. Apesar disso, as conquistas obtidas nestes 32 anos do SUS demonstram a sua força e potencial.

Os conselhos locais de saúde funcionam a contento?
Apesar da importância da participação social nas várias esferas do SUS, em alguns casos, há excessiva burocratização dos conselhos, foco em interesses corporativos, partidários e sindicais, que resultam no distanciamento dos interesses da população e na perda do seu caráter democrático.

A cartilha alerta para o fato de que os recursos do Ministério da Saúde para a Atenção Primária à Saúde podem passar a ser calculados conforme o número de pessoas cadastradas no SUS. Quais as consequências práticas dessa alteração?
É a Portaria 2.979/2019 do Ministério da Saúde, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde, pactuado na Comissão Intergestora Tripartite, sem interlocução com o Conselho Nacional de Saúde e a comunidade científica. A definição do rateio de recursos federais a partir da “pessoa cadastrada” e não do número de habitantes, como vinha sendo feita até então, rompe com o princípio da saúde como direito de todas as pessoas e inviabiliza a aplicação de recursos públicos não só no cuidado individual, mas também no coletivo, segundo as necessidades de saúde da população nos territórios, o que permitiria dimensionar melhor as desigualdades relativas às condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e geográficas dos municípios. Esta proposta descaracteriza completamente a Estratégia de Saúde da Família.

Qual o risco concreto de a Atenção Primária à Saúde ser privatizada? Quais as consequências?
Existe o risco de privatização, pois, em 1º de agosto de 2019, o Executivo enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) 890, que instituiu o Programa Médicos pelo Brasil e criou uma Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), que se constituirá como um serviço social autônomo, uma figura jurídica de direito pri­vado sem fins lucrativos. A MP 890 baseia-se em uma concepção restrita de atenção primária, entendida apenas como o primeiro nível de aten­ção, não contemplando a orientação comunitária e familiar, centrais para a garantia do cuidado integral e da abordagem populacional. A ADAPS inclui a prerrogativa de contratação de empresas privadas para a prestação de serviços e, em seu colegiado gestor têm assento entidades privadas, o que abre, sim, caminho para a privatização.




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